Pular para o conteúdo principal

Xs gauchxs do futuro: representações de gênero e tradição

Imagem: Sebastián Freire



Tradição tem a ver com construção de conhecimento, com sabedorias adquiridas. O compartilhamento desses saberes faz com que ela, a tradição, aconteça.  Nesses ensinamentos são passadas formas de viver e existir. Movimentos, jeitos, comportamentos, modos de ser e pertencer, que ficam muitas vezes no empírico, no sutil, mas que tecem a rede do que é observado e aprendido. Esse texto fala sobre como nos tornamos homens e mulheres, como aprendemos gênero e como podemos pensar em desaprender. 

Se vocês já acompanham as discussões que trazemos no Gauchismo Líquido, certamente já pensaram como as  convenções  impostas,  dentro do que se compreende como Tradicionalismo no Rio Grande do Sul, revelam  o  que vem    a    ser a masculinidade e a feminilidade, determinando  a  atuação  social  e  a  interação  com outros  indivíduos  a  partir  de  papéis  reprodutores pré-estabelecidos.

Sabemos que inúmeras questões sobre esse tema hoje vêm sendo repensadas, e como as questões de gênero nos ambientes da cultura gaúcha rio grandense já vem sendo problematizadas e estudadas nos últimos anos. Alguns trabalhos que já desenvolveram questões sobre esse tema são Homossexualidades na territorialidade tradicionalista gaúcha (2017) de Édipo Göergen, Teoria queer e discurso de ódio: prenda transgênera e a análise de comentários de páginas da internet linkadas em redes sociais (2020) de Júlia Menuci, Joice Nielsson e Patrícia Reis, e Danças Tradicionalistas Riograndenses, Gênero e Memória (2014) de Gisela Reis Biancalana, apenas para citar alguns exemplos e algumas referências de leitura para possíveis aprofundamentos sobre o assunto. Somamos a estes novos questionamentos um exemplo vindo de fora, dxs hermanxs argentinxs1.

A cultura gaucha do país platino, como bem sabemos, influenciou fortemente a maneira do Rio Grande do Sul perceber-se e identificar-se regionalmente, construindo uma identidade representativa para o restante do país. A dança, as vestimentas e os ritmos causaram inúmeras contribuições para a cultura regional sulista, que por mais que algumas vezes fossem vistos como "estrangeiros" aos olhos do Movimento Tradicionalista Gaúcho, sabemos que foram influências diretas para muito do que hoje se reconhece simbolicamente. Basta recordar onde estavam as raízes das pesquisas de Lessa e Cortes, que além das memórias dos rio-grandenses, absorveu e investigou os gêneros populares argentinos, a partir das pesquisas do musicólogo argentino Carlos Vega, que inspirou a produção da bibliografia feita pelos folcloristas gaúchos.

Sempre à frente e amadurecidos em suas questões relacionadas à indústria da música e ao folclore, diferenciando-se bastante do Rio Grande do Sul nesse aspecto, visto que pelo estado é perceptível como o gênero musical regional mantém-se como um nicho restrito e isolado, a Argentina parece também já ter aberto uma porta sobre suas performatividades de gênero e sexualidade, o que por aqui ainda é incipiente dentro dos movimentos Tradicionalista e Nativista.

A heteronormatividade nessa cultura, como já abordamos, tem ligação com o mito ocidental da macheza, segundo Hobsbawm (2013), e pilares no patriarcado, o que é uma característica comum a diversas culturas que apresentam a bravura, a relação com os animais e toda a lida e relação neste universo agropastoril como seu mito fundador. O fato é que a discussão sobre gênero e a cultura queer vem cada vez mais conquistando espaço nas performatividades sociais, o que pode ser demonstrado por novas performances de gênero mesmo em culturas tradicionais de raízes patriarcais, como foi visto no festival de Cosquín de 2022, realizado recentemente na província de Córdoba, na Argentina. 

Esse evento, que faz parte da tradição argentina, tendo acontecido sua primeira edição em 1961, em sua edição mais recente recebeu artistas trans e não bináries. Além disso, a partir deste ano o festival eliminou as categorias de gênero vocal feminino e masculino. Esta decisão foi tomada depois da denúncia realizada pela cantora trans não binária Ferni de Gyldenfeldt ao Instituto Nacional contra la Discriminación, la Xenofobia y el Racismo (INADI) após ser proibida de participar. "Solista vocal" apenas, foi o nome da nova categoria.

Este fato causou inúmeros debates e visibilidade para a questão, onde ficou também demonstrado que os artistas que expandem e afrontam as representações de gênero são pessoas integrantes do movimento cultural folclórico, o que bastaria para os legitimar neste contexto, o que demonstra também seus conhecimentos sobre a tradição que estão inserides. Sabemos que esse é um pensamento que impera em meio aos movimentos tradicionalistas, mas vale pensar no quanto devemos buscar estar em ambientes plurais, e que sejam abertos a todas as pessoas. 

Esses fatos falam bastante sobre liberdade para viver sua identidade, seja ela de gênero, ou ligada às suas regionalidades, e o direito de fazer uso das suas referências, para que elas estejam sempre vivas. Quando será que esse passo será dado por esses pagos?




1.  Os x's desta frase e do título referem-se à linguagem neutra, que é um fenômeno social, político e linguístico vinculado às lutas identitárias de grupos LGBTQIA+. Recentemente o sistema elu tem sido aplicado pois o uso de “x” ou “@", não funciona na linguagem oral. O sistema elu faz parte de um conjunto de propostas linguísticas criadas com o propósito de introduzir na língua portuguesa um gênero gramatical neutro, sendo a proposta de maior destaque os neopronomes pessoais elu, delu, nelu, aquelu, equivalentes aos pronomes femininos e masculinos existentes na língua, porém neutros em gênero.


2. A  dinâmica  instaurada  pelo  movimento LGBTQI+ originou novas óticas acerca de teorias pré-estabelecidas,   a   exemplo   da   percepção   de gênero    frente    à    transexualidade    denominada Teoria  Queer  (BUTLER,  2016).  A  Teoria  Queer, explica   Guacira   Lopes   Louro   (2004,   p.   4),   é atribuída  a  tudo  aquilo  que  não  é  habitual,  nas palavras   da   autora   “Queer   é   estranho,   raro, esquisito.    Queer    é,    também,    o    sujeito    da sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis e drags”. Para Louro (2004), a  Teoria  Queer  assume  a  responsabilidade  de  não se  definir,  de  não  se  enquadrar  em  nenhum  papel já  estipulado,  ela  aloca-se  “entre  lugares”  e  os indivíduos  da  categoria  assumem  “o  desconforto da ambiguidade”.



*O livro Gauchismo Líquido: reflexões contemporâneas sobre a cultura do Rio Grande do Sul (Editora Coragem) já chegou e está a venda AQUI. Adquira já o seu com FRETE GRÁTIS para todo o Brasil. Lançamento oficial dia 24/03/22 na Livraria Taverna.




 

Comentários

  1. Adorei o texto, o seu trabalho sopra um ar fresco rejuvenecido sobre a empoeirada tradição rio grandense, só me incomoda um pouco um certo excesso de academicismo, o que pode afastar talvez algum tipo de leitor, pois eu acho que esse trabalho deve se expandir a todos. O único ponto que discordo parcialmente é a colocação de que, os argentinos estão "sempre à frente e amadurecidos em suas questões relacionadas à indústria da música e ao folclore", pois eu observo que, no que tange a indústria da música em si, do pop ao rock e seus subgêneros, a indústria argentina me parece estagnada tecnologicamente, ou ao menos seus artistas medianos e independentes, acho que há mesmo um certo preciosismo no que tange misturas que poderiam ocorrer entre gêneros distintos, em suma, em certos aspectos, o pop rock argentino soa as vezes mais conservador que o brasileiro, mais genérico, isto digo depois de conviver com essas pessoas e consumir bastante dessa música, com breves excessões históricas em artistas como Andrés Calamaro ou Bersuit Bergaravat, nesse aspecto eu vejo o Brasil a frente no que tange o desenvolvimento tecnológico e mesmo na mistura do folclore com a música pop em estados do nordeste, por exemplo. Já quanto à indústria da música folclórica e sua relação e abertura a novos debates, a serenidade de quem compreende a própria história sem negar suas rusgas e iniquidades, é algo que se vê entre os hermanos e que está num horizonte bem distante da música e da cultura gaúcha, por isso exalto a importância do seu trabalho, mais ainda em resgatar e valorizar o papel da mulher nesta tradição historicamente machista. Obrigado.

    ResponderExcluir
  2. Desconstruir, instrumentalizar e destruir. Essa é a gênese do marxismo em todas as suas expressões. Estão tentando fazer o mesmo com a cultura gaúcha. Desconstruir suas tradições, instrumentaliza-las de acordo com a agenda marxista, e por fim destruí-las afastando-as de toda a sua essência. Abutres!!! Olavo de Carvalho tem razão!!!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O hino rio-grandense é racista?

  Reflexões sobre o hino rio-grandense motivadas pela manifestação de vereadores de Porto Alegre que em sua cerimônia de posse no dia 1º de janeiro de 2021 não cantaram em protesto aos versos que dizem "povo que não tem virtude acaba por ser escravo". Conheça outras versões do hino rio-grandense cantadas antes da letra de Francisco Pinto da Fontoura ser oficializada. A primeira letra feita para ser o hino da República Rio-Grandense, teve a autoria do Capitão Farroupilha Serafim Joaquim de Alencastre:  No horizonte Rio-grandense se divisa a divindade,  extasiada em prazer,  dando viva à liberdade.  Coro ...  Da gostosa liberdade brilha entre nós o clarão; da constância e da coragem eis aí o galardão. Avante ó povo brioso nunca mais retrogradar,  porque atrás fica o abismo que ameaça vos tragar.  Coro ...  Salve o vinte de setembro dia grato  e soberano dos heróis continentistas, ao povo republicano.  Coro ... Salve, ó dia venturoso risonho  Trinta de Abril, que aos corações pa

Livro Gauchismo Líquido vem aí!

            Feliz em anunciar que o livro "Gauchismo Líquido: reflexões contemporâneas sobre a cultura do Rio Grande do Sul" vem aí pela Editora Coragem! A pré-venda iniciou no dia 20 de setembro, anunciada através de um show online na Livraria Padula Livros em Porto Alegre, e o lançamento do mesmo está previsto para novembro.          Devido a isto os textos aqui do blog estão passando por edições e atualizações e não estão mais disponíveis, pois os conteúdos mais significativos estarão nessa edição impressa, acompanhados de novos textos. Então não deixe de adquirir agora mesmo o seu exemplar no site da editora Coragem: aqui .            Gauchismo Líquido é o primeiro livro da doutora em etnomusicologia e compositora Clarissa Ferreira, e traz reflexões sobre a cultura do Rio Grande do Sul, pensando sobre suas construções identitárias e representações na música e na literatura. “Líquido” vem do sociólogo Bauman, quando se refere à contemporaneidade, onde nada é feito para